quarta-feira, 31 de outubro de 2012

BRASÍLIA TEM CICLOVIAS



Brasília tem ciclovias. É uma dignificante iniciativa. Terá 600 km de ciclovias dentro de alguns meses ou anos. Falta combinar com os ciclistas para as utilizarem. Os pedestres, com isso, ganharam calçadas novas ao lado das antigas malcuidadas.
As bicicletas foram inventadas antes das ciclovias. No Brasil, é diferente. Antes de mais nada, uma decisão política com sabor eleitoral oferece 600 km de ciclovias para um indefinido e imprevisível número de ciclistas.
No Brasil e em Brasília, quando os administradores, finalmente, executam, com quarenta anos de atraso, alguma obra que torna mais cômoda a vida do cidadão, o fato aparece na imprensa como um modelo para o mundo. Produto de exportação. As ciclovias de Brasília já são, nas entrevistas de geniais administradores, um modelo para estados brasileiros e países emergentes.
Os trechos estão incompletos. Os cruzamentos de vias não têm sinalização. Cortam calçadas de pedestres sem aviso. De repente, interrompem-se e não se sabe se continuam por terra ou se levantam voo.
Em Helsinque, Finlândia, as ciclovias, há mais de 40 anos, são parte da calçada de pedestre com sinalização. Pedestres numa banda, bikes, na outra. As travessias se fazem nos semáforos quando o sinal vermelho detém ônibus, carros particulares e bondes. Pedestres e bikes atravessam em segurança.
Nos trezentos metros de ciclovias que ocupam a antiga calçada de pedestres, na extensão da Quadra 406 Sul/L-2, desde sua construção há um mês, vi passar um ciclista a passeio.
Quando o governo inventar um programa social tipo MOBILIDADE CARINHOSA, por meio de uma Bolsa Bicicleta, as ciclovias brasilienses serão um modelo para a “sustentabilidade”do planeta Terra.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O CARTÃO DE CRÉDITO E EU



Fatos inexplicáveis acontecem. Meu cartão de crédito do Banco do Brasil sumiu para sempre, em duas ocasiões, no decorrer de um ano.
Trago comigo, por imposição do Dr. Sistema, dois cartões de bancos diferentes para pagar contas. Lembro-me que, na cidade de Tromsa, no norte da Noruega, em 2009, quando Hilkka e eu fomos comprar as passagens de ônibus para Oslo, a agência de viagens não aceitava dinheiro. A humanidade evoluída chegou ao ponto de não confiar na moeda do próprio país.
Meus dois cartões do Banco do Brasil simplesmente sumiram de meu bolso da camisa. Nenhum nem outro dos dois foram encontrados ou achados. Não houve saques criminosos nem indícios de que tenham sido utilizados como tentativa de comprar um carro sem IPI.
Perder ou extraviar um cartão de crédito é uma dor de cabeça virtual e real. Há que bloquear o uso do cartão e exercitar a paciência pela rede telefônica. O bloqueio atinge o usuário. A atendente estagiária, com autoridade bancária, recomenda o pedido de outro cartão, com pagamento de segunda via. O dito será entregue num prazo que varia de cinco a catorze dias dependendo dos sábados e domingos que se interpõem no período.
Vi-me diante da máquina eletrônica cheia de dinheiro e instruções. Ela me olhava indiferente como se eu fosse um marciano. Minha cidadania brasileira, minha prova numérica de contribuinte pessoa física eram impotentes diante do olhar frio da tela iluminada.
Senti-me derrotado, um joão-ninguém, um pária, um marginal do sistema bancário. A máquina insensível escondia o dinheiro que me pertencia. Em pé, diante dela, olhando desanimado para aquela frieza amarela, percebi o horror de ter minha humanidade reduzida a um cartão de plástico.
A política da igualdade econômica dos cidadãos se baseia na importância pessoal de possuir ou não um cartão de crédito. Somos todos iguais perante a máquina eletrônica. O acesso livre, democrático e igualitário ao nosso próprio dinheiro depende de um cartão de plástico aprovado pelo Dr. Sistema. A fidelidade à palavra honrada está substituída pelo cartão fidelidade.
– Para facilitar nosso atendimento, tenha em mãos o número de seu cartão, me disse uma voz virtual quando, humilhado, tentei comunicar ao Dr. Sistema minha temporária situação de marginalidade cidadã.
Como pôde a humanidade sobreviver durante 30 ou 40 mil anos sem cartão de crédito?

UMA LEITURA POÉTICA DA NATUREZA


Foto: Sítio das Neves, 
ouvindo as árvores.

João Carlos Taveira
           
Lançado recentemente em Brasília, o livro As Árvores Falam (Ed. Movimento, 2012), de Eugênio Giovenardi, vem comprovar a vocação inequívoca de seu autor para os assuntos relacionados com a Natureza, o meio ambiente e, enfim, a vida no planeta Terra. Ambientalista e estudioso do cerrado há quase quarenta anos, Giovenardi não descuida não só do presente (tão ignorado) como também — e principalmente — do futuro de nossos descendentes (tão comprometido e incerto).

          Neste livro escrito em forma de crônicas prepondera um diálogo permanente entre o narrador e alguns personagens mirins, que vai desaguar na grande preocupação de todos: ou renovamos nossa maneira de pensar a respeito da natureza que nos cerca e da qual fazemos parte, ou sucumbiremos à degradação e destruição da fauna e da flora por nossas próprias ações comportamentais; ou, pior ainda, em alguns casos, pela ausência delas. Para o autor, o homem precisa urgentemente repensar o seu habitat, se quiser preservá-lo e garantir sua sobrevivência.

          E assim o diálogo se abre aos seres animados e inanimados. A conversa que Eugênio Giovenardi estabelece com pedras, paus, cupins, flores, galhos, ramos e árvores termina por seduzir insetos e passarinhos. Mas não só. Vez por outra, ouvimos e presenciamos palpites e sugestões de cobras, lagartos, macacos, tatus, gatos do mato, bem como de pacas e outros pequenos roedores — preocupados com a derrubada de árvores, poluição das águas e, o que é terrível, a ação criminosa do fogo.

          Esse universo fantástico e miraculoso é recriado a partir do Sítio das Neves, do qual o autor se diz hóspede (a propriedade pertence a todos os seres que lá habitam) e que foi tombado pelo Instituto Brasília Ambiental (Ibram) como Área de Preservação Permanente, por apresentar características muito próximas de uma política estabelecida pela Unesco em todo o mundo. Ali, com a ajuda inestimável de cupins, foram construídas e estão sendo preservadas mais de 100 represas de cabeceira, que protegem diversas nascentes e garantem a vida saudável de mil e uma espécies dos reinos vegetal e animal.

          Estendendo-se por quase 200 milhões de hectares, o cerrado é o segundo maior bioma do nosso país. E, como sabemos, a vegetação é única, por suas características especiais. Por isso, devia ser preservado com mais rigor, para impedir que as estatísticas continuem sendo favoráveis à Amazônia, quando se trata de devastação e de ocupação indevida. Lá, devido a uma série de fatores e circunstâncias, dentro de 20, 30 anos as áreas devastadas se reconstituem automaticamente. Aqui, infelizmente, não há salvação para a devastadora e predatória ação do homem. Nas áreas de cerrado destruído só há duas expectativas: ou o solo vira deserto ou cede às erosões.

          As Árvores Falam é um livro muito pertinente ao momento político que o país atravessa. E é um alerta para as gerações presente e futura. Depois da construção de Brasília, que mudou a face da nossa história e alterou o mapa do Brasil, a preservação do cerrado passa a se constituir — para todos nós — numa preocupação permanente. Eugênio Giovenardi, com esse livro, dá o exemplo e aponta com clareza e desvelo os desastres que ainda podem ser evitados. É leitura urgente, se não obrigatória.  
  
Brasília, 8 de outubro de 2012.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

RAÇA, COR, SEXO E RELIGIÃO



As relações entre seres humanos são sutilmente afetadas por preconceitos de raça, cor, sexo e religião. Eles surgem do DNA familiar e crescem conosco desde o berço. Prolongam-se, convivem sorrateiramente em qualquer grupo e se manifestam com intensidade diversa, mas permanente e enraizada nos pensamentos, nas palavras e nos gestos. Algumas manifestações históricas retratam a trajetória de inúmeros preconceitos.
Numa das épocas áureas da história, ressaltou-se a Grécia. O império cultural, político, militar se impunha com a força da língua grega. A Grécia e o resto do mundo conhecido. Os helenos e os bárbaros. Não entendendo a língua dos dominados, os gregos desprezavam esse idioma ridicularizando populações inteiras e suas palavras indecifráveis. O que pretendiam dizer esses povos com o que os gregos, rindo, imitavam: bar bar bar? Os dominados só sabiam dizer, gritar e chorar em bar bar bar. Esses eram os bárbaros. O racismo nascente. Temos, hoje, uma versão para desprezar a opinião alheia: o blá, blá, blá.
Os romanos, estendendo seu império do Ocidente ao Oriente, excluíram igualmente da cidadania os bárbaros dominados.
Logo, a sociedade da nova era se dividiu em cristãos e pagãos. Os que se destinavam ao céu e os que se reuniriam no inferno. Formou-se em poucos séculos o sangue azul de um filão da nobreza. O sangue vermelho do povo substituiu os bárbaros.
Evoluímos para a esquerda e a direita. Formamos o progressista e o reacionário. Defendemos o capitalismo ou o socialismo. Uma guerra se fez em nome da raça ariana contra a judaica. Cunhou-se o patriota nacionalista e o antipatriota internacionalista. Com a bandeira pátria hasteada, propôs-se adesão voluntária ao expurgo emocional: ame-o ou deixe-o.
Criou-se um vezo antagônico entre o Norte e o Sul do globo para ressaltar a divisão de ricos e pobres, de exploradores e explorados, de imperialistas e dominados. Não bastasse a insolência de invasões de terras continentais ocupadas por culturas milenares, praticamos o barbarismo civilizado contra índios sem alma e sem cidadania. Opressão de brancos contra escravos negros aos quais se galardoam cotas de cidadania sem esconder o preconceito racial, apelidado de dívida histórica.
Alternamos a importância do masculino e do feminino, do sêmen e do ovário, e discutimos machismo e feminismo, homo e heterossexualismo. Há revoltas surdas, greves, protestos entre chefes e subordinados, entre o capital e o trabalho, entre o lucro e o salário.
E, na vida política brasileira, alcançou-se o fundo do poço como um balde vazio empurrado pelo lulismo e o efeagacismo.
O preconceito, composto de deuses e demônios assola o vasto mundo das relações entre os homo sapiens sapiens, dotados de inteligência e capazes de imensas descobertas. Poucas, pouquíssimas pessoas não são afetadas por um ou mais desses preconceitos.
A esperança tênue é de que, nos próximos cem anos, a espécie humana ultrapasse a fase ainda persistente da divisão entre helenos e bárbaros.

8.10.2012

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

DEMOCRACIA AUTORITÁRIA




A frágil e inconsistente democracia brasileira não se comprova pela falta de instituições, de mecanismos legais, agências reguladoras, audiências públicas, conselhos múltiplos e variados, dezenas de partidos políticos disformes, eleições periódicas, congresso nacional, câmaras legislativas, movimentos sociais, passeatas de protesto contra injustiças sociais e preconceitos diversos. Ao contrário, essa complexa rede de relacionamentos supõe o exercício da liberdade democrática.
Como tudo isto opera e como a inteligência política e administrativa faz funcionar a democracia para preservar o poder de governar é que se necessita compreender. Além do dito núcleo duro central que toma decisões ao sabor de seus humores, dirigidos ao alvo essencial que é a manutenção do poder no tempo, entram em jogo os chamados mandos médios, hierarquicamente organizados para sustentar e cumprir as ordens emanadas de cima.
A administração da democracia brasileira, apesar dos 36 ministérios que abduzem todos os suspiros da população, não configura um plano coerente a ser seguido por um período de 20 ou 30 anos. Ela é composta de ordens espasmódicas, semanais ou mensais, emanadas de uma estrutura esquizofrênica construída pelos agentes do poder.
A democracia é administrada por um grupo emergido do parto eleitoral cesariano que traz características históricas de conceitos, ideias e práticas arbitrárias, autoritárias e centralizadoras. As sequelas do centralismo monárquico e das ditaduras ainda persistem no organismo político brasileiro. Ordens, determinações, decisões, decretos, medidas provisórias surgem diariamente acolitadas por números, previsões, percentuais contraditórios, declarações de ministros, desmentidos da presidência.
Taxas de juros, índice de inflação, geração de postos de trabalho (sem a correspondente informação de demissões ou perda do emprego), renda média do trabalhador recebem explicações e justificativas sempre favoráveis aos desejos e expectativas dos governantes.
Táticas e experimentos na condução da economia, estratégias psicológicas de convencimento da população sobre os acertos das decisões, truques políticos, espertezas administrativas e judiciais são forjadas ininterruptamente para calar e eliminar qualquer reação ou oposição que tente discutir os assuntos antes das decisões anunciadas. Os que estão no poder sabem tudo.
Uma das fórmulas para silenciar e desmantelar o debate democrático é lançar espalhafatosamente programas por milímetro quadrado das necessidades populares predefinidas pela inteligência política e ratificadas pela participação de selecionado grupo da “sociedade organizada”. Não há o que não esteja pensado no campo da educação, da saúde, do esporte, da economia, da infraestrutura viária, marítima ou fluvial, do ambiente urbano e rural, da tecnologia, da habitação. Não importa que 100% das obras do PAC I e PAC II, segundo a revista Inteligência (editora Insight), estejam atrasadas de acordo com o projeto original. Nem é possível, nesse quadro confuso, saber quando sua execução estará completa. Com o anúncio e o funcionamento precário desses programas, ninguém mais acredita que haja famintos, embora se agrupem pedintes nas portas dos restaurantes, dos bancos, nos semáforos. A miséria foi extinta em nosso rico país porque as estatísticas do IBGE não captam os moradores de tugúrios rurais e favelas urbanas cercados de esgoto e lixo. Os 6% de desempregados não é soma que tire o sono dos estrategistas da sexta potência e são minimizados a ponto de causar orgulho aos economistas. Informam-nos que a renda dos mais pobres (R$ 622,00 por mês) cresce em taxas relativas superiores às dos mais ricos (R$ 100.000,00 por mês), o que não impede a ninguém de comprar geladeira, freezer, computador, celular, carro importado, reformar a casa, trocar a mobília herdada dos pais ou avós, frequentar restaurantes, viajar de avião e realizar o sonho nos indispensáveis divertimentos da Disneylândia.
O importante é deixar pública a capacidade de se antecipar: “Já pensamos nisso. O programa X ou Y será lançado às vésperas das eleições e terá início em 2013 para assegurar o desenvolvimento sustentável”. O coroamento desses programas esparsos, dispersos, disseminados sobre o território nacional e introduzidos homeopaticamente na cabeça da população é feito com a repetição martelada aos quatro ventos: “nunca antes neste país”.
Outro truque político eficaz que desarticula a oposição é apontar os erros de governos anteriores como causa da ineficiência administrativa em curso e, sagazmente, ocultar com estatísticas e percentuais manipulados as falhas da gerência atual.
Se a oposição política inteligente quiser ser útil à recomposição ética da democracia não será pela condenação de programas lançados nem pela queixa de não ser convidado a discutir as condições prévias para sua aprovação. O caminho mais útil será apontar as causas administrativas, gerenciais e profissionais de todos os atrasos das obras decorrentes desses programas e dos equivocados mecanismos de execução devoradores de orçamentos bilionários maculados por roubos, peculato e apropriação indébita, amparados pela impunidade e a leniência.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

ÁRVORES



Sou um escritor (envergonho-me dessa afirmação) que ouve as árvores. Admiro-as. Observo-as. Elas me comovem. Falam em silêncio. Presas ao chão por suas próprias cadeias radiculares estão sempre ali, pacientes, vendo passar os dias, as estações, os equinócios, os ventos, as chuvas. Olham para cima, para o Sol, para as estrelas.
Já presenciei o desespero, os gritos de impotência, o voo sinistro das cinzas, o turbilhão de labaredas quando incêndios irracionais, descuidados devoravam campos, árvores centenárias, florestas cheias de segredos e mistérios.
Estilhaços da história do universo voavam pelos ares. Silenciaram as árvores. A vida recolheu-se às raízes. Ressurge das cinzas. Recomeça debaixo do chão, no ventre da terra. A vida, os germes da vida são obstinados.
Viver é preciso. Com persistência, com astúcia, com truques existenciais, com prazer, com tenacidade.
30.9.12