segunda-feira, 31 de maio de 2010

CASCA

Há sete décadas, meu pai, por razões de trabalho profissional, trocou o distrito de Casca pela Vila Marau. Menino de três anos, deixei a praça da matriz, onde nasci, e segui o caminho que o destino me preparava.
Nesse longínquo distrito de Guaporé, denominado Casca, se instalaram italianos e poloneses. Desbravaram florestas para sobreviver. A ação necessária daquele tempo foi continuada pelos descendentes. Nem todas as orientações e medidas de precaução foram seguidas nessa luta pela sobrevivência. A natureza, hoje, se ressente de cuidados especiais em benefício das novas gerações.
Casca, 8 mil habitantes, perdeu parte de sua beleza florestal. Nascentes de água foram atropeladas pela pressa em produzir, pela invasão de cultivos que exigem grandes espaços, pelo uso intensivo de agrotóxicos, comuns em todas as regiões do Rio Grande.
Entretanto, a nova safra de jovens agricultores toma consciência dos riscos de agredir a natureza. Há, felizmente, corajosas iniciativas para adequar a produção econômica necessária à capacidade do solo de repor os elementos que dele se requerem. O conforto da riqueza está relacionado ao ambiente que produzimos quando usamos as forças e as energias da natureza. A ecologia começa a ter importância na vida dos agricultores de Casca.
Embora Casca seja um município de razoável extensão, a pequena população é um privilégio que permite planejar e executar serviços públicos com boa qualidade. Creches, escolas, ensino primário e secundário, até o Universitário (UPF), passando pelos cursos técnicos e profissionais, põem Casca entre os poucos municípios brasileiros que eliminaram, há anos, o analfabetismo.
Casca não é Brasil ainda que se orgulhe de ser brasileira. É, por seu conteúdo e forma, um anexo da Bella Itália, com quem mantém fortes laços de intercâmbio e cidadania, ou da Polônia. É uma comunidade de cultura social coesa. Ali se guarda em museus familiares e na memória privilegiada de seus próceres, um passado ainda recente para glória das futuras gerações.
Em Casca, falam-se dois idiomas: o dialeto vêneto ou o polonês e o português casquense, com seu linguajar e sotaque típicos que dão harmonia e bom humor às conversas e surpreendem positivamente o visitante.
Sou filho pródigo de Casca. Reconheço. Nada fiz pela terra que me foi berço. Não dou glória a ela. Ela é que me glorifica. Meu olhar de sociólogo e escritor se encheu de emoção e comoção ao ver-se rodeado de montanhas, bosques e águas fartas. Porém, me enterneceu mais que tudo o calor de uma população que, ao vencer diariamente as constantes tribulações da cidadania pelo trabalho árduo, sabe divertir-se e desfrutar dos bons momentos da vida.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

PEDOFILIA E CELIBATO

Uma onda de denúncias atormenta a Igreja Católica na Alemanha, Irlanda, França, nos Estados Unidos, no Brasil. Padres, freiras, bispos, cardeais, assessores do papa são acusados de pedofilia e abuso sexual de menores e jovens em suas paróquias e espaços onde se realizam atos comunitários em nome da religião. Antigamente dizia-se prostituição infantil.
Casualmente, caiu-me em mãos o folheto Rumos, abril/2010, editado pelo Movimento Padres Casados, inteiramente dedicado a examinar e exorcizar o celibato imposto pela Igreja aos sacerdotes.
O celibato eclesiástico, bombardeado há dezenas de anos por padres casados, leigos e algumas autoridades hierárquicas, com a divulgação do termo pedofilia, recebeu um reforço na luta para sua abolição. O homossexualismo entra, às vezes, como apêndice complementar nessa discussão moral entre católicos.
A pedofilia não é fato novo na Igreja Católica nem nas sociedades civis antigas e modernas. A pedofilia é prática oficial em algumas culturas. Meninas de 12 ou 13 anos são entregues por seus pais a uma personalidade do clã como esposa a ser estuprada contra sua vontade e tornar-se, até que a morte os separe, uma escrava com todo o conforto material. Nos incipientes reinos da Espanha e do Império Austro-húngaro, a prática de arrumar casamentos para combinar fortunas envolvia crianças. Os reflexos desses comportamentos se expandiram sobre a moral e os costumes.
Na cultura católica brasileira, de Sul a Norte, de Leste a Oeste, há inúmeras histórias de pedofilia cujos atores são tios casados, coronéis da casa grande, políticos de estirpe nobre e prole abundante, monsenhores de paróquias famosas. Jornais têm divulgado iniciativas de mães que oferecem suas filhas e filhos nas ruas de algumas capitais do país a turistas, nacionais e estrangeiros, e altos funcionários casados de empresas privadas e públicas.
Nem o celibato nem o casamento compulsório fazem bem à saúde do indivíduo ou da coletividade. Apelar para a prática da pedofilia de alguns poucos sacerdotes para abolir o celibato canônico não parece um argumento inteligente e adequado a convencer autoridades hierárquicas tradicionais de uma instituição religiosa que se diz de origem divina. O fato de ela abranger distintas culturas espalhadas pelo mundo e a ecumênica evolução da interpretação dos diferentes caminhos de expressão religiosa é que deveriam concorrer para liberar a opção pelo casamento.
Fixar-se apenas no risco do escorregamento moral da pessoa para legislar ou abolir leis chega-se ao ridículo de ler considerações apresentadas por luminares da teologia católica. Diz Leonardo Boff que “Deus pode estar tentando dizer [por meio da pedofilia] que é hora de a Igreja abolir o celibato imposto por lei”. Será esse Deus tão cruel a ponto de causar inesquecíveis e insuperáveis traumas a seus filhos bem amados só para que teólogos bem alimentados do Vaticano tenham pena de sacerdotes abstêmios de sexo? Ou a palavra de ordem do prestigiado teólogo Hans Küng: “Para lutar contra a pedofilia, a abolição do celibato dos padres”.
Quem garante que os padres e freiras pedófilos não o seriam se fossem casados? Os milhares de padres que contraíram matrimônio o fizeram para não se tornar pedófilos? Ou a pedofilia é mais um argumento para justificar sua nova opção humanamente correta? Os padres casados já aboliram ipso facto o celibato. Talvez sua questão de consciência não seja mais a lei do celibato e, sim, a de pertencer a uma instituição que, em nome de Deus, lhes tira a tranquilidade buscada no convívio da pessoa amada, mulher ou homem.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

AS PEDRAS DE ROMA

Jorge Salton é psiquiatra e escritor, professor da Universidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul.
São suas estas considerações:
"Num tempo apressado, apressado até no escrever e no publicar, o autor deste livro trabalhou com paciência. Reuniu seu profundo conhecimento sobre o tema com sua acentuada habilidade em colocar em boa escrita a arte de contar uma história que envolve o leitor página por página."

AS PEDRAS DE ROMA,
EUGÊNIO GIOVENARDI
EDITORA MAISQNADA - PORTO ALEGRE

quinta-feira, 20 de maio de 2010

BOMBAS NUCLEARES

Infelizmente, nosso país está atrasado em aspectos importantes da vida cultural, política e econômica. Mas, felizmente, o Brasil chegou atrasado na fabricação de sua bomba nuclear. Motivo de orgulho patriótico e militar para alguns países, há 60 anos, hoje, envergonhadas, as grandes potências pousam de monges budistas em busca de um mundo zen.
Quando li, casualmente, pois a bomba atômica não é meu brinquedo preferido, que existem, nos armazéns secretos de meia dúzia de países, 23 mil bombas nucleares ativas, me solidarizei com o presidente Lula da Silva. Explico as razões de minha solidariedade.
Existe um Tratado de Não Proliferação de armas nucleares. Sabe-se que foram desativadas, até agora, mais de cinco mil, mas restam mais de vinte mil ativas. A tecnologia para produzir uma bomba atômica além de sofisticadíssima e caríssima é também crudelíssima e estupidíssima. Com o uso alternativo desse dinheiro daria para tirar milhões de pessoas da miséria absolutíssima.
O emprego desses superlativos decorre da informação de engenheiros que se especializaram em produzir artefatos para brincar de terra arrasada. São brinquedos superperigosos. É um esporte radical.
Eles afirmam que o estoque existente de bombas nucleares ativas tem capacidade de destruir mais de dez vezes a vida na Terra. Creio que o leitor tenha compreendido o significado dessa afirmação. É não só estupidez ter bombas para destruir dez vezes a vida no planeta, como é missão impossível. É suficiente destruir a vida na Terra uma única vez. As outras bombas sobram nos armazéns e não haverá quem as use. Construí-las é um investimento antieconômico. É meu conselho aos investidores.
Eis porque estou de acordo com os que pretendem convencer o companheiro Ahmadinejad a não gastar dinheiro na fabricação de um brinquedo tão perigoso quanto inútil. Ele não terá a gloria de lançá-lo sobre os destroços do planeta.
E o que é mais frustrante para os detonadores da implosão da Terra é que não haverá aqui ninguém, mas ninguém mesmo, para aplaudir a hecatombe universal.
Os oráculos romanos alertavam os políticos afoitos da Roma imperial: Quem Zeus quer humilhar, primeiro lhe tira o juízo.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

ARQUITETURA DA RIQUEZA

Consolida-se a nova arquitetura do pensamento brasileiro, dos critérios e valores do cidadão, da educação moral e da busca da felicidade sem culpa. Ela está entregue a arquitetos de jornais, revistas, canais de TV e rádio e a âncoras da Internet que desenham perfis e maquetes de celebridades e de vencedores.
A pedagogia usada pelos novos arquitetos da civilização brasileira é alavancada e sustentada por guindastes institucionais, civis e religiosos, operados com poderes especiais que vencem e se sobrepõem às leis da gravidade moral e ética, da ordem e do respeito, e financiam a aventura social e política da sociedade.
A nova arquitetura não se ocupa em construir um grandioso edifício do pensamento, alicerçado na sólida pedra da educação primária estendida a todos os brasileiros. Nem na conclusão universal do ensino secundário. Os novos arquitetos do pensamento amoral e aético desenham a amplidão espacial e a profundidade do bolso da calça ou da saia do brasileiro, a resistência de sua caixa forte e os contornos dourados da conta bancaria.
Trata-se de implantar uma arquitetura pedagógica para formação de milionários num país de 70 milhões de pobres e miseráveis. O princípio pedagógico expresso numa revista com tiragem de 1,2 milhão de exemplares é comovente: “se esses milionários podem não ter lugar assegurado no céu, pelo menos estão ajudando outros brasileiros aqui na terra”.
Portanto, a moda brasileira é formar, como estampa a revista na capa colorida, seis milionários a cada hora, ou 144 no curso do dia. Quando o sol desponta na barra do horizonte e os sabiás cantam a alvorada, o Brasil acorda com mais duas centenas de milionários. Não é sublime e encantador isso?
Ao final do ano, quando os fogos de artifício iluminam os sete mil quilômetros de nossas praias, 52.560 novos recrutas se perfilam no exército de milionários. E, assim, passarão cem anos para construir pouco mais de 5 milhões desta nova espécie de cidadão. Convenhamos, é um ritmo lento para as expectativas de um país a caminho de se tornar 5ª potência mundial.
Atento às minhas considerações, Pedro de Montemor indagou-me se é necessário, importante e conveniente construir milionários em países emergentes quando, nos países ditos ricos, essa pedagogia caiu de moda. Será um jogo de esconde-esconde entre milionários. O milionário da soja compra, por telefone, um lençol finíssimo da milionária dos tecidos. O milionário da carne compra o sapato do milionário dos calçados de couro de jacaré ou de rã. O produto milionário tem que ser exclusivo. Forma-se a rede da solidariedade milionária acumulada nos armazéns e centros de recolhimento das bolsas de valores.
Temos, segundo a revista, em época de maré alta, uma receita arquitetônica para edificar milionários sem culpa e sem preocupação com a entrada no monótono teatro do céu. Os arquitetos da sabedoria milionária previram a estética do paraíso da alienação. O milhão tornou-se o primeiro mandamento da religião do sucesso.
Já temos a arquitetura da riqueza que confraterniza com os mestres de obra da pobreza e do atraso. Por muitos e muitos anos, teremos um Brasil do Quarto Mundo ao lado do Brasil 5ª Potência, paraíso de “um novo milionário a cada dez minutos”.
La nave và!

sábado, 15 de maio de 2010

GERONTOFILIA

Há uns quatro anos, milhões de aposentados recebemos uma carta assinada pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva, dando-nos os parabéns pela feliz ideia que teve de autorizar empréstimos deduzidos diretamente do benefício. O presidente permitiu aos bancos de porem a mão no nosso bolso. Milhões de aposentados caíram agradecidos aos pés do presidente e dos bancos para sobreviverem. Foi uma confissão presidencial pública de que os velhinhos do INSS estavam a ponto de morrer de fome. Agora, morrerão endividados.
Acabo de receber carta de um Correspondente Autorizado (BMG). Os termos, em forma de diálogo, são de uma generosidade e simpatia inacreditáveis. Eis o diálogo da extorsão:
BMG: Você é aposentado? Então, saiba: o empréstimo com desconto no benefício foi criado pelo governo com o objetivo de levar crédito aos Aposentados e Pensionistas do INSS.
Mané: E isso é vantajoso?
BMG: Sim! O pagamento das parcelas é descontado diretamente em seu benefício, com taxas de juros bem menores e você poderá pagar em até 60 vezes, (ou cinco anos).
Mané (ontem, completou 80 anos): Quanto posso comprometer de meu benefício?
BMG: Até 30%.
Mané (confiante): Se já tenho empréstimo, posso fazer outro?
BMG: Sim. Mesmo que você tenha empréstimo de outros bancos e tenha comprometido 30% do seu benefício, pode refinanciar seu contrato e ainda levar o dinheiro que está precisando.
Mané (picado): Onde posso ter mais informações?
BMG: A Real Fácil oferece a você uma consultoria financeira gratuita e irá orientá-lo sobre as melhores condições para se fazer um empréstimo (isto é, tornar você um eficaz devedor).
E para não deixar dúvidas na cabeça do Mané, o consultor do BMG concluiu:
− E lembre-se, você teve reajuste agora, e isso quer dizer que você tem margem extra! Aproveite!!!
Ao final, nos oferece simulação de empréstimo. O Mané leva líquidos R$ 1.260,63, pagará 60 vezes R$ 40,00, isto é, começa devendo ao banco R$ 2.400,00.
Ó sarcasmo! Ó ironia! Isto, senhor presidente da república, é pior do que pedofilia. É gerontofilia!!!

quinta-feira, 13 de maio de 2010

BOLA FAMÍLIA

No último plebiscito, Dunga se elegeu presidente do Brasil e destituiu o Imperador. Durante trinta dias, o patriotismo nacional estará nas mãos do presidente Dunga. Tuma e suas ligações perigosas com a máfia internacional chinesa, pelas leis de Freud, ficarão de quarentena mordendo o inconsciente do ex-presidente Lula. Na primeira análise científica sobre os jogadores convocados, o técnico Lula trocou o Superego Dunga pelo Id Tuma.

Para compor o governo provisório, o presidente Dunga convidou 11 ministros e 13 vice-ministros. 13? Não são nossos melhores profissionais, mas gozam de boa cotação nas bolsas mundiais do futebol. São nomes de executivos que a maioria do povo brasileiro conhece em detalhes. Suas ações terão altas ou baixas significativas no up-grade de investidores em pés atléticos.

Milhões de analistas credenciados acompanharão, com artifícios estatísticos, a evolução do crescimento do PIB (produto individual balístico) e o número de pontos que possam declarar o Brasil primeira potência mundial do esporte britânico.

No Brasil dos 170 milhões de eleitores que acorreram às urnas do BBB, quem sabe quantos ministérios criou o ex-presidente Lula?, Neste país, descoberto em 2003, quantos cidadãos sabem o nome do atual ministro da agricultura, ou da cultura, ou da justiça?

Nesses 30 dias de governo de exceção, de férrea ditadura dos meios de comunicação e de censura prévia aos assuntos ditos essenciais, os ratos estarão soltos na Esplanada dos Ministérios e em todos os armazéns da república.

Não importa. Com onze ministros, o presidente Dunga administrará as emoções dos brasileiros e, se a sorte o ajudar, terá executado, em 30 dias, o mais eficaz programa de eliminação da desigualdade social − o Bola Família.

Todos iguais perante a bola. Uma só bandeira. Um só grito.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

QUARTO MUNDO

Analistas financeiros, cuja matriz geradora de perspectivas é o crescimento do PIB, anunciam suas previsões: no ano 2020, o Brasil será a quinta potência econômica do planeta.

Essas análises vêm de Nova Iorque ou Londres, embelezadas e postas nas vitrinas de São Paulo e Rio de Janeiro por nossos jornalistas especializados. A quinta potência de 2020 conseguirá dar outro nome às favelas do Rio de Janeiro e aos 5 milhões de paulistanos residentes em áreas irregulares, sujeitas a inundações e deslizamentos de morros? Se, debaixo de suas barbas, estão fortes elementos que dividem nosso país em vários Brasis, qual deles será a quinta potência?

A 50 quilômetros do centro da capital federal – Brasília − está o Engenho das Lajes, um vilarejo de 5 mil almas. Os empreiteiros do Brasil quinta potência decidiram construir sobre a Rodovia BR 060, que separa a comunidade em duas metades, um viaduto desnecessário e inútil. Sua única finalidade é aumentar o percentual do PIB regional.

Se a quinta potência terá essa mesma irracionalidade na administração do dinheiro público, não há que duvidar de que possa chegar à terceira potência. O Engenho das Lajes tem um viaduto desnecessário e inútil. Os habitantes do vilarejo não foram atendidos em seu pedido ao longo de 20 anos para que se construísse uma passarela de pedestres. A escola e a biblioteca estão numa das metades do vilarejo. O supermercado, o posto de saúde e o posto da polícia estão no outro lado. A rodovia duplicada recebe o fluxo de milhares de automóveis, caminhões e ônibus entre as capitais de Minhas Gerais, de Goiás e do Distrito Federal, ensurdecendo a comunidade e ameaçando seus habitantes.

O Engenho das Lajes tem fornecimento de água precário, os esgotos não são coletados em redes e muitos escorrem pelo chão, somados ao lixo atirado nas sarjetas. As ruas contaminam as casas com nuvens permanentes de poeira, na época seca e se enchem de lama no período chuvoso. O número de desempregados, de roubos, de gravidez precoce, de alcoólatras se expande sem controle, apesar da multiplicação de igrejas de todos os matizes bíblicos.

Há milhares de Engenhos das Lajes neste país que os analistas internacionais preveem como quinta potência. Os artifícios estatísticos que medem a expansão do PIB não melhoram a educação nem a saúde de milhões de brasileiros condecorados com a medalha de quinta potência.

Há milhares de Engenhos das Lajes neste país a quem se lhes deu viadutos, mas não se pensou em lhes construir uma passarela, aumentar o número de horas escolares, pavimentar ruas, canalizar esgotos, abrir uma casa de cultura para ver filmes e ouvir música.

Seremos quinta potência guardando com entusiasmo futebolístico a maior diferença salarial, o preconceito racial, a desigualdade social e a indiferença política.

Conheço o Engenho das Lajes há mais de 30 anos. Que mudanças visíveis houve ali? Houve aumento da população sem condição digna de moradia. Os serviços de ensino, higiene e saúde são inadequados. A urbanização é uma aventura individual do cidadão sem recursos. Mas o PIB não se alimenta desses serviços. O PIB cresce nesse circuito nefasto de consumir-produzir-consumir, não importa que sejam viadutos desnecessários.

Os milhares de Engenhos das Lajes, ao longo e ao largo do país, são a expressão mais legitima do Quarto Mundo que subsistirá em 2020 quando o PIB do Brasil lhe dará a posição de Quinta Potência.

BRASÍLIA GRÁVIDA

Brasília está grávida de quase oito anos. Ano a ano, surgiram como cogumelos bares e restaurantes para acolher a nova classe operária de funcionários indicados pelo partido que chegou ao poder. Vieram de todos os quadrantes da mãe pátria para ocupar ministérios, secretarias, departamentos, autarquias, institutos, agências reguladoras, fundos de pensão, empresas públicas, centros de lobbies partidários, arrecadadores de propinas como nunca neste país.

Os bares de Brasília, até então discretamente freqüentados, começaram a se entupir de tal forma que, com a ajuda solícita dos deputados distritais, foi necessária a aprovação dos puxadinhos para ampliar os espaços requeridos pela crescente demanda. Os estacionamentos se revelaram estreitos e insuficientes para conter a nova leva de carros do ano em quantidades desproporcionais à capacidade das vias. Em frente aos bares e restaurantes da moda que aparecem subitamente criou-se a figura do manobrista para acomodar os carros em fila tríplice.

40 mil assessores, que o atual governo trouxe a Brasília, viviam da cervejinha provinciana, no bar do mercado municipal, nas pacatas cidades desconhecidas do interior, pendurando os gastos que os dois salários mínimos não permitiam. Hoje, guindados a assessores, distinguidos com os de-a-esse, reajustados em 200% em quatro anos, dobrados em 50% os cargos em confiança, enchem restaurantes e bares, compram carros novos do formato jipe ou de marcas orientais tamanho-extra-large.

De segunda a segunda, é difícil encontrar um bar da Asa Sul ou Asa Norte que não receba uma superclientela com supersalários. É a claque federal. Na minha quadra, a livraria que lembrava aos passantes o antigo hábito da leitura deu lugar a um restaurante de Primeiro Mundo oriental, com direito a invasão de área pública. Restaurante também é cultura. Troca o livro por prato.

Não resisto a concluir, sentado num banco à sombra de um ipê-roxo, que essa enxurrada de milhões introduzidos em bolsas, meias, e cuecas pelas construtoras, empreiteiras de novos bairros, condomínios, viadutos desnecessários, empresas de informática, está vestindo Brasília de falsa riqueza e de veraz arrogância.

Compreendo por que os atuais governantes e seus partidos não podem ser derrotados nas eleições distritais e federais. Seria a falência de Brasília. Seu amor à capital dos sonhos de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer não permite que se abata sobre ela o desastre do desemprego generalizado, de bares e restaurantes entregues às moscas.

Mas se a força do destino levar para longe os mercenários do Distrito Federal, ficaremos nós, desfrutando do silêncio do Planalto Central, sem saudade dos que partem.