sábado, 29 de novembro de 2008

SÓ RINDO

Chega de choro. Houve tempo em que se dizia “quem não chora, não mama”. Pensava-se que a choradeira era um dos bons caminhos para se conseguir a atenção do governo para as dificuldades dos que estavam mais longe do poder.
− Com o tempo, me disse Pedro de Montemor, cansei de chorar. Pus-me a rir. Rir de tudo, especialmente das piadas diárias que ouço pelo rádio e pela TV. Piadas sérias, ditas por celebridades financeiras, senadores, deputados e pela mais alta autoridade do país.
Montemor tem razão. É saudável rir e gargalhar. Quando ouço o ministro da fazenda, vestido a caráter, de olhar turvo, vaticinando o futuro de nossa economia robusta, tenho crises de riso.
Quando os comentaristas econômicos da Globo News afirmam que a bolha imobiliária já vinha de 2007 e estava na cara que ia explodir, só não sabiam onde e quando, morro de rir.
Quando leio que os deputados distritais do DF cortaram gastos de cafezinho para melhorar a segurança dos brasilienses, estalo numa sonora gargalhada. E, quando votaram um aumento da verba de gabinete, manchei a folha do jornal com uma cusparada que saiu com risada mefistofélica.
Quando ouvi o senhor Lula recomendar à população mais pobre que se endivide para comprar geladeiras, televisores e computadores para socorrer as indústrias, tive um acesso de riso incontido e quase perdi o fôlego. E ao anunciar mais alguns bilhões de reais na conta das montadoras e agências de automóveis para facilitar o financiamento do sonho do brasileiro não controlei os esfíncteres.
Quando li a notícia da concessão de milhares de hectares na Amazônia a interessados comprometidos com o meio ambiente para deter o desmatamento e reduzi-lo a zero, fui vítima de um ataque de incontinência urinária provocada pela explosão da gargalhada.
Onde, antes, encontrava motivos para me indignar, chorar e denunciar, agora me assalta incontrolável obrigação de rir.
Poderá alguém não chorar de tanto rir quando os governadores de Brasília afirmam que vão tornar inteligente o sistema de transporte, abrindo retornos, levantando viadutos, duplicando e triplicando avenidas?
Poderá alguém deixar de rir quando propõem levantar muretas ao longo os eixos para impedir que os pedestres não sejam massacrados pela fúria insana dos condutores?
Poderá um brasiliense conter a ironia do riso quando os administradores de Brasília prometem – de novo - humanizar as passagens subterrâneas que ligam as quadras 200 com as 100?
Telefonei a Pedro de Montemor para lhe contar que a área do Setor Noroeste será reservada para moradias da nova classe média e que a juíza Gildete Balieiro acusou os indígenas Fulniô, Kariri Xocó, Tapuaya e Tuxá de serem invasores de terras públicas.
Respondeu-me com uma retumbante gargalhada cujas ondas sonoras se prolongaram por alguns minutos.
− É para rir, meu caro amigo. A vocação de palhaço é para provocar um saudável riso.
Lembrei-me de uma saudação corrente na velha Roma, quando os adivinhos se encontravam após abrir as entranhas das aves para ler o futuro dos crédulos imbecis: Risum teneatis amici? − Vocês conseguem segurar o riso, amigos?
Eugênio Giovenardi
28/11/2008

terça-feira, 25 de novembro de 2008

CONSUMIR É VIVER

Telefonei a Pedro de Montemor. Ele publicou uma crônica sobre a obrigação civil de consumir. A desobediência será penalizada com um imposto do não-consumo.
A economia de qualquer país está condicionada, segundo as regras do capitalismo, ao intenso consumo de bens para estimular a produção agrícola e industrial.
Está implícito que o consumidor tem que arcar com o preço final da chamada cadeia produtiva para que se complete o circuito e o bem possa retornar ao mercado da esquina. É uma verdadeira cadeia com grades de proteção inabaláveis.
Há bens e bens. Os de sobrevivência são, de longe, os mais acessíveis e, muitos deles, podem ser colhidos gratuitamente em árvores, caçados nas florestas ou pescados nas águas. Parte dos bens de subsistência vem da agricultura tradicional e, a mais dispendiosa, da agricultura comercial.
Os bens de conforto ou supérfluos não absoluta, mas relativamente úteis ou até necessários, que facilitam a existência das pessoas, são os que, hoje, dominam a economia. Têm tal importância que os governos lhe dão prioridade sobre a educação e a saúde. A produção de automóveis é uma dessas que exigem todo o cuidado. Montadoras e bancos não podem falir. É um dos dogmas do moderno capitalismo.
Comentei com Montemor as declarações de Barack Obama e do senhor Lula. Ambos os presidentes não só estão preocupados com o futuro e o presente da indústria de automóveis, como se tornaram marqueteiros do setor. O senhor Lula incentivou o consumo desse bem com palavras paternais e uma expressão de advertência no rosto vermelho:
− Comprem, comprem, continuem comprando, se vocês pararem de comprar a indústria não produz e aí, sabe, vem o desemprego e, sem salário, ninguém mais compra.
− Lula tem pena dos industriais, disse Montemor, e apela para a solidariedade dos consumidores. Mas a maioria destes vai atrás de preços mais baixos da geladeira e do carro, numa atitude discriminatória.
− Eu fico triste com isso, respondi, Penso na alta tecnologia empregada na Ferrari, na Mac Laren e outras. O governo deveria estimular a compra dessas marcas com créditos especiais, favorecendo a nova classe média recém-tirada da letra D pelo IBGE.
− Seriam milhares de Ferrari e BMW pilotadas pelas amplas avenidas de Brasília por garis, diaristas, caixas de supermercados. Isso levaria os governantes a asfaltar as ruas de Santa Maria, Itapoã e Paranoá para receber esses novos hóspedes da cidade.
Os metalúrgicos dessas empresas, os pilotos da F1 e toda a escuderia que os pajeiam na hora da troca de pneus teriam garantidos seus empregos para alegria dos investidores.
Com uma indústria florescente de automóveis de primeira linha tecnológica, belos e velozes, faltaria ao senhor Lula, num rompante de improvisação, ordenar ao ministro da fazenda e ao da saúde que acabem com as filas dos hospitais. Os pacientes voltariam o quanto antes às agências de automóveis, aos supermercados e lojas de grife e, com créditos fartos disponíveis nos bancos, exerceriam sua liberdade e direito de consumir. Consumir e viver.
25/11/2008

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

EXPANSÃO, EXPLOSÃO E RETRAÇÃO

Dá-se pouca importância ou, pelo menos, não com a intensidade devida, ao jogo louco da expansão da economia sem ater-se ao transbordamento da população. Toda a atividade humana, do nascer ao morrer, só pode ter significado em razão da vida inteligente sobre o planeta. Alimentar a vida, protegê-la das intempéries, dar-lhe conforto e garantir sua sobrevivência são pedras angulares da civilização.
Evoluímos em proteger as pessoas contra a imprevisibilidade relativa do comportamento das leis físicas que regem os fenômenos inevitáveis da natureza. Avançamos pouco e lentamente no campo da convivência entre as pessoas e criamos conflitos humanos de intensidade maior do que um terremoto.
O afã de criar e usufruir dos itens de conforto cresce a níveis de loucura, insensatez e crueldade. A corrida é desproporcional à resistência do corpo e à capacidade do cérebro em vencer distâncias, a ponto de o corredor desmaiar antes de chegar ao alvo final. O ritmo atual de expansão da ambição intelectual e volitiva encontrará, num momento imprevisível, um ponto de explosão, de contração e retração.
Brasília, o Distrito Federal e arredores correm perigosamente por essa avenida de expansão determinada pelo aumento crescente da população que se adensa sobre uma área de 5.782 km2. As duas conseqüências mais visíveis da pressão populacional se refletem na ocupação densa dos espaços por meio de assentamentos urbanos e na mobilidade de grandes massas humanas por um sistema inadequado de transporte individual que entope diariamente as avenidas e estacionamentos.
Essa dupla expansão − produção de bens econômicos e população − tende a uma explosão inevitável por meio de uma contração súbita e uma retração que pode se prolongar por mais tempo do que o desejável.
Considere-se a densidade, hoje, de 400 habitantes por km2 ou 2,500 m2 por pessoa. Esse exíguo terreitório é dividido e compartilhado por uma dezena de personagens. Entre os principais estão as vias públicas, a casa ou o edifício residencial, as vertentes de água, as matas nativas, os dutos de esgoto, as redes elétricas e de comunicação, os centros de serviços básicos e burocráticos, as áreas de esporte e lazer, os meios de transporte e mobilização do cidadão.
Todas as atividades de sobrevivência se fazem sobre essa área limitada. Todas essas atividades tendem a expandir-se, violentando-se umas às outras, pressionadas pela população que também se expande.
Hoje, 2,5 milhões de pessoas, no Distrito Federal, correm atrás dos meios de sobrevivência, do pão à casa para morar, da escola ao trabalho.
Um dos sinais de uma inevitável explosão é o número alarmente de 217 mil desempregados no Distrito Federal, acossados pela humilhação, pela segregação, pela frustração e, presumo, pela dignidade. Há crianças, em casa ou na rua, esperando pelo pão.
Não é de estranhar que os governos tentem tapar alguns pontos de vazamento desse gás explosivo com mais postos policiais e tropas de elite nas ruas e aumento crescente de distribuição de alimentos, através de múltiplos artifícios para adormecer a multidão cansada.
A inteligência social, não usada a tempo para ordenar o ritmo da expansão da população, exaure-se em adiar o momento da explosão.
É unânime o sentimento do cidadão brasiliense e dos governantes de que os milhares de carros que circulam irracionalmente por todas as avenidas, eixões e eixinhos de Brasília, tornaram a vida do cidadão um inferno.
Em que pese o rol de grandes e custosos projetos orientados a minimizar os efeitos da expansão desenfreada em processo, no Distrito Federal, temo que eles sejam ineficazes para controlar o avanço dos fatores instalados para a explosão anunciada e a conseqüente retração da onda expansiva.
Os fatores alternativos que poderiam reorientar o rumo dessa tresloucada expansão, mas sistematicamente reduzidos ao discurso, são educação, trabalho, saúde e saneamento. Concretamente, menos viadutos e mais escolas e bibliotecas, melhores professores e bem pagos, menos cadeias e mais hospitais, postos de saúde regionais, com médicos sanitaristas. Menos automóveis e cidades mais livres e limpas para o confortável caminhar do cidadão.
17/11/2008

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

BRASÍLIA QUEM A DEFENDE?

Quem poderia defender Brasília e o DF das sucessivas agressões a seu estilo urbanístico e à natureza frágil sobre a qual descansa?
Serão os legisladores eleitos que, há anos, a mutilam por dentro e a decepam por fora? Com eles, Brasília conheceu as invasões de áreas públicas e os condomínios irregulares, o sacrifício das áreas de proteção ambiental, os puxadinhos, o sétimo andar de alguns blocos residenciais.
Serão os arquitetos? Nem todos. Uma parte deles alega que não se pode engessar a cidade. Não há em Brasília costelas, nem pernas ou braços quebrados para engessar. Eles propõem dar-lhe novas pernas e novos braços e transformar Brasília em centopéia.
Serão os engenheiros? Eles estudaram para projetar e dar vida a um edifício onde o proprietário demarcar. Seja quem for o dono do terreno: José ou Joaquim, Prefeito, Governador ou Presidente. Eles traçam avenidas, ruas, pontes, viadutos, centros comerciais, edifícios de dois ou vinte e dois andares, escolas e hospitais.
Serão os donos de imobiliárias? Eles parecem sofrer de compulsão construtivista incurável e não descansam enquanto uma área verde não se transforme num centro comercial, cheio de vida e de carros.
Serão os ambientalistas? Quem cumpre as leis que defendem a natureza? Não são ecochatos, ecopoetas os que clamam pela morte das veredas, das plantas e animais do cerrado, das nascentes e córregos que circundam Brasília? Não são eles que se antecipam e previnem a iminência de desastres que a mão humana está provocando contra si mesma?
Será a população da Samambaia, da Ceilândia, da Asa Sul ou Norte, do Sudoeste ou do futuro Noroeste? Eles defendem seu próprio ninho à custa de Brasília.
Serão escolas ou igrejas? Da escola se espera o respeito pela história, se for bem contada. Das igrejas se esperam milagres, mas em política são raros ou não acontecem.
Serão as crianças? E qual Brasília defenderão? A do sonho dos fundadores que encantou o mundo? A bucólica aldeia dos anos 60? A pacata cidade dos anos 70, com pouca gente e poucos carros, sem semáforos e sem engarrafamentos? A dos anos 90 que se encheu de prédios, torres, invasões, condomínios, viadutos e pontes? Ou a cidade ameaçada do ano 2008, com mais de um milhão de automóveis e engarrafamentos diários?
É preciso dizer às crianças que nasceram em Brasília e às que vêm de fora que é importante preservar o silêncio da cidade, proteger todas as árvores, todas as nascentes e córregos que formam o Lago do Paranoá.
Se alguém quiser defender a cidade comece por frear o ímpeto imobiliário. Restringir o acesso de automóveis às áreas centrais de Brasília. Mudar o paradigma que orienta os investimentos. Dar celeridade ao transporte coletivo em todas as suas opções. Reduzir o ritmo do movimento sem perder a eficiência. Transferir os serviços para perto das pessoas. Pôr inteligência na administração pública. Ensinar os funcionários públicos a pensar. Alfabetizar a população de Brasília para melhor entender o que é uma cidade-parque.
Mas ao ver tanta indiferença civil, tanta ambição de poder, tanto conformismo profissional, tanta competição cega, tanta resistência ao bom senso, ouço Brasília repetir baixinho:
− Resistir é preciso, esmorecer não é preciso.

11/11/2008

terça-feira, 11 de novembro de 2008

TRINTA ANOS DEPOIS I

Trinta anos atrás, nossa filha e a amiga, ambas com oito anos, cedo saíam de entre os blocos da SQS 406 e caminhavam tagarelando pelas aléias até a Escola Classe da 206 Sul. As respectivas mães ocupavam-se de suas tarefas sem preocupação pelo destino das filhas. A atmosfera social das quadras era de confiante segurança.
Trinta anos depois, para vencer algumas centenas de metros que separam a casa à escola, babás, mães e vans acompanham e arrastam pesadas mochilas. O medo tomou conta de pais e crianças.
Trinta anos atrás não havia um milhão de carros invadindo os espaços do cidadão a pé, único e exclusivo senhor da cidade e da rua. Não se havia ainda proposto o paradoxo de constranger o cidadão a exercer seu direito de atravessar uma rua de sua cidade numa faixa sinalizada com risco de sanção se desobedecer. As escassas faixas para travessia de pedestres lhe dão segundos para escapar do atropelamento, quando não a sensação de culpa por atrapalharem a velocidade e a pressa do condutor do carro.
Trinta anos atrás, os condutores paravam ao ver os colegiais esperando para atravessar a rua. Onde não houvesse guardas de trânsito entre 7h30 e 8h, para ordenar a travessia e proteger as crianças de condutores apressados ou distraídos, um adulto que por ali passasse levantava a mão e parava o fluxo com sua autoridade de cidadão.
Trinta anos depois, o superpovoamento da cidade, os milhares de carros que se atropelam pelos retornos, tesourinhas e passagens de pedestres, o medo tomou conta do cidadão. Medo de andar na rua, de estacionar à noite, de sair de casa, de ir ao cinema, de freqüentar uma festa e não voltar. Medo de usar as infectas passagens subterrâneas, um dos poucos territórios exclusivos do pedestre. Medo de um seqüestro relâmpago, fruto de uma ordem que plantou a desigualdade e colhe mortes.
Trinta anos atrás, nossa empregada era analfabeta. Trinta anos depois o país continua analfabeto, como afirma Lia Luft. Nossa diarista de hoje, sua irmã e a mulher do caseiro de nosso Sítio, todas entre 30 e 40 anos, são analfabetas. Trinta anos atrás, houve Mobral.
Em trinta anos, fazem-se grandes mudanças. O computador e o celular mudaram a vida de muitos milhões de pessoas. Trinta anos não mudaram aspectos básicos da vida do cidadão que nasce entre milhões de artefatos eletrônicos. Nossos netos manejam engenhos complicados e nos olham com compassiva superioridade, mandando MSN a seus coleguinhas de escola primária, mas não podem andar cem metros sozinhos entre a casa e a padaria ou ao ponto de ônibus.
A cidade está sendo subtraída ao cidadão e, com isto, perde o charme e a elegância humana. Entra-se no carro para ir às concentrações de lazer em bares protegidos por serviços de segurança, disfarçados de apoio ao cliente. Foge-se para os guetos. Ruas tomadas de automóveis e desertas de pessoas. Deixam-se solitárias as árvores e delas usufrui-se apenas a sombra para o descanso de nosso senhor o carro.
Trinta anos depois, felizmente, Brasília não se iguala ainda ao que é o Rio de Janeiro ou São Paulo. Mas o caminho se estreita perigosamente.

11/11/2008

TRINTA ANOS DEPOIS II

A obsessão pelo crescimento econômico, o estímulo indecente à compulsão do consumismo, o valor de papéis na ciranda das bolsas mundiais, a estabilidade da moeda pregam a nova moral do ser subordinado ao ter.
Quem possui se defende com o poder de comprar, consumir, proteger seus bens mais que sua pessoa. Quem não tem, quem está segregado por essa moral do ter, avança sobre a pessoa, única responsável pela desigualdade. Despojar o outro para que sinta os efeitos de não ter ou de perder o que tem.
Convicta ou involuntariamente, fazemos coro a essa nova moral e a consolidamos pela via do consumismo. O ruído matinal do trânsito em todas as vias da cidade e os primeiros noticiários do dia nos lembram, com entusiasmo, os princípios da moral que orientam a necessidade incontrolável de comprar alguma coisa supérflua. Somos convidados a aumentar o consumo em 10%.
Entramos todos nessa nova onda. Os que têm muito e os que quase nada têm se encontram no mesmo centro comercial em busca da igualdade econômica de consumir. Separam-nos as oportunidades não comerciais. Os mais pobres são arrastados a sacrificar a comida, a saúde, a leitura para levar um celular, um computador, uma geladeira, um carro usado para o fim de semana. A igualdade vai se fazendo com o ter e com as estatísticas do IBGE.
Enquanto Luiza, 10 anos, pode ler um livro por semana ou mais, Dalila lerá com dificuldade o manual de geografia ao longo do ano e mal sabe localizar no mapa nossa vizinha Bolívia.
E assim vão se formando opiniões políticas que elegerão governantes e legisladores. Todos presos ao anzol da moral do consumo compulsivo e do crescimento. Decisões podem ser tomadas nesse rumo, não para proteger pessoas, mas para assegurar os bens, os ativos, qualquer que seja o valor dos passivos do ser.
Quando a menina de 9 anos apareceu esquartejada em mala de viagem, na bela cidade de Curitiba, os bens materiais da família atingida se reduziram a pó. O assassino descontrolado feriu o cerne que a nova moral descuidou: a pessoa, essa desconhecida.
As chacinas nos morros do Rio de Janeiro, no regaço das famílias, nas portas dos bancos, nas escolas, roubam muito mais do que os bilhões que as bolsas engoliram.
. E, para exagerar, parece que proprietários e condutores de carros querem utilizá-los como arma de controle da expansão da população. O mais surpreendente é o estímulo dado às montadoras pelo discurso oficial e pela entrega de dinheiro público às agências de automóveis. É a cobra comendo o próprio rabo ou, como se dizia outrora, são as contradições do sistema. As facilidades e o conforto nos destruirão. Prosperidade e estupidez.

11/11/2008

terça-feira, 4 de novembro de 2008

BRASÍLIA, CIDADE DO AUTOMÓVEL

Mais de um milhão de carros nacionais e importados circulam com placa de Brasília por suas amplas avenidas. Entopem o centro da cidade, formam filas densas no acesso das superquadras, nos retornos e nas tesourinhas. Não acham lugar para estacionar nos ministérios, nas universidades, nas quadras comerciais, ao redor dos blocos residenciais.
Levantam-se viadutos, ampliam-se ruas, abrem-se retornos nas avenidas, instalam-se pardais e retenções de velocidade para facilitar o trânsito e evitar mortes.
O pedestre em Brasília é raro, constitui um estorvo, é um cidadão atrasado e teimoso. Ele só é pedestre ao atravessar a rua para ir ao banco ou voltar do mercado ao automóvel. Quem dispensa o carro, em nossa era, é anormal ou covarde. Não sabe lutar nem competir. De uma quadra a outra, o brasiliense usa o carro. Ocupa, quase sempre sozinho, seis metros quadrados de espaço. Estaciona onde quer, onde pode ou não pode.
Reclama mais estacionamentos, nem que para isso seja preciso cortar árvores e asfaltar o chão ou furar o subsolo para encavernar-se.
Brasília é uma metrópole e sem milhões de carros e fartos engarrafamentos não se sustenta. O carro mata mais que as guerras vigentes. Está declarada a guerra do trânsito. Para separar os exércitos de automóveis em combate diário, propõe-se a construção de muretas ao longo dos eixos rodoviários. A intenção é boa. Melhor espatifar-se contra as muretas do que atropelar pedestres raros e teimosos.
Ao ver tantos automóveis, ao admirar o entupimento das vias, ao apreciar o desfile de máquinas potentes, caras e velozes, muitas delas trazidas do Oriente fascinante, cabe ainda uma iniciativa de repercussão nacional e mundial.
A Câmara Legislativa do DF, criada para desfigurar a cidade, deveria em caráter de urgência, com a presença de representantes de montadoras nacionais e estrangeiras, sindicatos de distribuidores de combustíveis, liderados pela Petrobrás e organizadores da F-1, decretar, em termos inquestionáveis, BRASÍLIA, CIDADE DO AUTOMÓVEL.

ÁGUA POUCA, GENTE MUITA

Você quer entender os motivos da escassez de água?
Ontem, dia de Todos os Santos, informaram que o córrego Bandeirinha, que abastecia Formosa, secou. O Bandeirinha desapareceu depois que dezenas de irmãos dele também morreram atropelados pela insensatez dos habitantes do Distrito Federal e arredores. E outros mais vão sumir. E a gente poderia ter evitado esses desastres tratando a natureza com mais inteligência.
O motivo principal é que há muita gente e gente descuidada. Do Presidente da República ao contínuo do cafezinho, do Governador do DF ao morador da Samambaia, do prefeito de Formosa ao produtor de tomate, todos acham que a água não se acaba.
Gente se faz todas as noites. A água cai a cada seis meses. Nascem 200 bebês por dia, no DF. Cada bebê a mais significa um acréscimo de 200 litros de água na família. Vá somando e multiplicando a necessidade de litros de água por dia e você entenderá porque a água é escassa. No DF, somos 2 milhões e meio de consumidores diários de água. E cada dia chega mais gente. São 500 milhões de litros por dia que descem pelo ralo, sem contar o consumo agrícola, industrial e comercial. O DF não produz essa quantidade. Estamos importando água cara.
Não é de estranhar que os rios estejam secando. Cortaram as árvores à beira dos córregos, invadiram até o Jardim Botânico, construíram condomínios e cidades em cima de nascentes de água, arrasaram o Cerrado para plantar soja e algodão, furaram milhares de poços artesianos, asfaltaram ruas e praças para adorar nosso senhor o automóvel.
A água vai se acabando, acabando e a gente cortando árvores e secando nascentes.
- É gente descuidada muita e água pouca, disse o velho Ariosto, nascido e criado em Formosa.

sábado, 1 de novembro de 2008

PERDI BILHÕES

O investidor russo Vladimir Lisin
perdeu US$ 22 bilhões nas Bolsas.



Perdi bilhões de dólares ou de euros, tanto faz,
Me informou o banco que também perdeu
O que era meu.
Contar bilhões, contei.
Gastei semanas e anos a contar.
Quando cheguei aos 20 bilhões
A bolsa de valores me notificou
Que eu ganhara mais 60 bi.
Parei de contar o que não via.
Era bastante saber o que existia.

Eu usava e gastava e dava
E torrava e comprava
E o bilhão não acabava.
Eram tantos bilhões que alguns perdidos
Não me fariam falta.

Ainda ontem, no pregão da bolsa,
Eu vi, estavam lá.
O personal manager do Banco da Islândia
No relatório codificado, de circulação restrita,
Anunciava-me um depósito secreto de dezenas de bilhões.
Repousariam, em sigilo bancário,
Por dois dias, seu peso bilionário.
Os bilhões não acordaram.
Sumiram na escuridão da noite.
Ladrões invisíveis levaram a caixa-forte
E o banco também.



Perdi bilhões.
Mas nunca deles precisei
Para comprar o avião, a Ferrari, o iate,
A mansão, o colar de ouro,
Os diamantes e as esmeraldas,
Gozar noites de gala,
De prazer e de farra.

Voaram meus bilhões.
Para onde?
Eu sabia que bilhões são voláteis
na selva do mercado.
Voam de bolsa em bolsa.
Em Londres? Em Nova Iorque? Em Paris?
Quem mexeu em meus bilhões
Que estavam naquela bolsa?
E a bolsa, onde está?

Sei de amigos que,
na bolsa e na especulação,
também perderam seu bilhão.
Outros, mais afortunados,
Perderam só milhões
Ou apenas milhares.
Meus bilhões, quem os achou?

Os bancos centrais abrem as bolsas
De seus otários e oferecem bilhões
Aos que perderam bilhões.
Esses bilhões eram meus.
São os meus bilhões perdidos.

Sou proprietário de bilhões perdidos.
Onde estão? Onde os deixei?
O que não fiz com meus bilhões?
Se ainda os tivesse
Não saberia o que fizesse.
Melhor assim. Estão perdidos.
Que faria com os bilhões que perdi?
Poderia ter feito? Poderia.


Esses bilhões perdidos me dão prazer,
Me dão poder, me fazem respeitado.
Sou o homem dos bilhões perdidos.
Que alegria e que ledice!
Vladimir perdeu bilhões, dizem, quanto não tinha!
Sou Creso. Apolo me revelou:
− ou foi a pitonisa no cabaré de Calcutá? −
“Um reino será destruído.”
Mas não disse qual.
Passarei à história e a Rússia lembrara
O homem dos bilhões perdidos.

Onde os ganhei?
No mesmo lugar onde os perdi
O camponês russo matou a galinha dos ovos de ouro
Para não morrer de fome.
Bilhões, é melhor não tê-los para não perdê-los?
Ou tê-los para perdê-los?

Perdeu-se o primeiro bilhão,
Depois mais um, enfim dezenas.
Os tostões à caixinha sempre voltam,
Mas os bilhões aos bornais
Não voltam mais.

(E parodiando Bocage)
Meus bilhões evaporei na bolsa insana,
na ambição de ganhar que me empurrava.
E alegre eu ria e louco eu sonhava
Buscar no mercado a essência humana.


29/10/2008