quinta-feira, 23 de outubro de 2008

OITO OU OITENTA

Dizem os institutos que medem o grau de satisfação do povo que, de cada cem brasileiros entrevistados, oitenta estão de acordo com tudo o que o presidente Lula faz ou não faz. Apenas oito entre cem, isto é, 15 milhões, não estão com o Presidente. Os números ganham proporções nacionais. É o povo brasileiro quem fala. Os demais 12%, ou seja, 22 milhões, quatro Finlândias, não contam para os institutos de pesquisa.
Se realmente essa satisfação foi medida, eu acredito nela. Por que? Porque compreendi as regras do jogo econômico e os princípios da retórica social da esquerda que assumiu o poder desde 1994. Nenhum governo administrou melhor o lucro dos bancos do que Lula. Como diminuir a desigualdade se a remuneração de um senador é 72 vezes maior que a de um trabalhador de salário mínimo? Ao eleger um senador, o eleitor está consolidando a desigualdade.
A esquerda se convenceu, depois que chegou ao poder, que não pode haver economia sem o espetáculo do crescimento, sem uma classe rica e sem uma classe média consumidora de supérfluos, da qual se origina. Uma ampla camada de trabalhadores subempregados e desempregados justifica a retórica do combate à desigualdade e à injustiça social. Pequenas fatias do bolo fazem a alegria dos miseráveis.
A distancia entre ricos e pobres, entre a classe afluente, a média e o povo está sendo medida pela geladeira, a máquina de lavar, o fogão a gás. A geladeira está diminuindo a distância entre os ricos e os chamados carentes. A geladeira é, fora de dúvida, um equipamento útil para qualquer casa. Estamos conseguindo, graças ao endividamento geral, que os pobres comprem uma geladeira a crédito pelo preço de duas. A geladeira levou milhares de famílias pobres para a classe média.
Quem são esses oito por cento que não concordam com Lula? Segundo afirmações de sociólogos do governo, que justificam a atual orientação pragmática da economia financeira e da bolsa de valores, neste momento em crise, esses 15 milhões de opositores são os que acreditam que o mercado define quem ganha e quem perde, que acham natural a desigualdade e precisam de mão de obra barata para produzir lucros. Mas esses não estão com Lula? Suspeito que haja esquerdistas nesses 8%.
Pertenço ao grupo dos oito, sem ter simpatia alguma pelo deus-mercado. A bolsa de valores me dá nojo. Os bancos me inspiram sentimentos assassinos. Dediquei quarenta anos a pregar a justiça social e distributiva no meio rural. A que conclusão cheguei depois desses 14 anos de governos de esquerda à qual eu pensava pertencer? Que todas as decisões políticas e econômicas são tomadas de cima para baixo numa clara postura de dominação e autoridade paternal e ditatorial. Só as epidemias e as doenças contagiosas decidem de baixo para cima.
O povo e o governo se entenderam. Cada macaco no seu galho. O governo está contente com o que decide, seja em favor dos bancos ou dos pobres. O povo está alegre com o governo que lhe deu a chance de se endividar no banco e comprar a geladeira. A comida está garantida. O resto virá depois trazido pelo milagroso PIB.
Oponho-me à febre do “crescimento” que derruba árvores para fazer viadutos, que destrói florestas para construir represas, que ignora o sol e o vento como energia alternativa, que avilta nossas cidades com monstrinhos movidos a petróleo poluidor.
Com a ordem econômica em vigor não se erradica a pobreza nem se reduz decentemente a desigualdade entre os oito e os oitenta. A desigualdade trabalha em nossas casas e mora na periferia. Os oitenta ainda não sabem o que são direitos por que a escola não ensina. E os governos sabem disso. Mas a retórica proclama sem ruborizar-se: “pobre também tem direito a geladeira, a fogão a gás, a forno micro-ondas”. Esses são os direitos que o povo entende e lhe bastam sem deixar de ser pobres. Foram anexados pela estatística à classe média sem precisar ler um só livro em toda a vida.

Eugênio Giovenardi, sociólogo e escritor
20/10/2008